17.10.08

O contínuo alinhamento dos automóveis
demonstra ipso facto o fracasso do modernismo.
Qualquer iluminista sublinhará a circunstância recente
do crescente défice da razão em detrimento
do peso metafísico das ciências ocultas
não obstante o sol e a lua e o peso enfermo das tradições.
Sempre que à montanha nos fazemos, apetece-nos saltar
para o níveo cume de modo a experimentar a emoção
do voo sideral, de possuir outra gordura, de ser asas
muito depois da morte. Não creio mesmo que pensemos
ser possível morrer. Enquanto relacionarmos
a carga de exportações com o processo do nosso quotidiano
nunca seremos capazes de eclodir como as tartarugas.

16.10.08

Em parafuso

Dás-me o fruto da noite tão maduro
embrulhado em papel não reciclado,
desenhos do teu rosto no percurso
até ao bar tornado biblioteca.
Calco cada metro descontente:
a vida é, em rigor, substância indigna,
sopro fétido, novelo sempre infindo,
à frente, em tosco pinho, a corda presa.
Fui educado, sabes, por mãe teimosa,
por isso em contraponto esbanjo o vento,
e os luares maníacos não me dão pêlos
e dentes, antes alento e romantismo,
alento e romantismo, se compreendes!

Tu amas tão-somente a consistência
das coisas, a casca dos arcanjos. E logo
hoje que perdi o coração, última loiça,
e levitei lençol adentro em espírito
pronto a entregar-me. Deste-me sal,
presumo, pelo sabor a canções repetidas,
mas bati palmas como a parva foca,
admito, implorando por favor mais peixe.
Só o número falhou. De olhos turvos
saltei da água passivo, o dorso, o brilho,
cetáceo ternurento, e lentamente
esmaguei o teu corpo no retrato
suspenso num instante de beleza.

13.10.08

Vida dupla

É lento o mar neste paredão impresso.
As guitarras navegam longe com os mastros
apodrecidos, ao compasso das ondas
as cordas raquíticas desafinam. É feia a praia em que acosto.
Nunca estive certo de nada, a verdade mais séria
voou pela janela quando me desmascararam.
Tossi esmeraldas aos pés de sicrano, incendiei
as casas de pássaros em viagem, ainda pugno
por lugares de alguma paz. Minha caligrafia nocturna,
distorção do silêncio, penitencio-me ao pólen,
intento contra o vento ao estender os braços
ao inefável istmo do frio, submerjo sem flor.
Semeio no corpo a fonte das pedras, cárie
aguda que outrora porfiei, e que ora agrupo
em uma mão cheia, ora disperso como as cinzas
de uma alma falida que nenhuma lágrima lamentará.
Salto da jangada para um museu de partículas,
o rio flanqueia o olhar, o vale desnorteia.
Era uma vez um anjo que quis cair; mais tarde
lhe criticaram tamanha clarividência.

Abóbora

Vejo ao espelho o invisível alumínio do medo,
aspiro o pó do coração. Por detrás de mim,
uma luz caduca leva-me ao sangue arrepios de febre,
a fome anormal do doente em convalescença,
o quadrado amargo de terra sob a cruz.
A noite ensinou-me a ouvir o ritmo da madeira.
Húmidos órgãos esses que em abstractos eternos minutos
acendem a escuridão por um vómito e alguma cegueira.
Furibundo, decidi nascer para as árvores, despi o teor limpo
de algumas palavras e afoguei-me nos ares como quem voa
na impulsão de ficções e de criaturas reais. Levei
esta carcaça miúda, porta em porta, inverosímil
espectro escuro, e procurei por ti. Tu eras o pior da tua rua.
Por tua causa todos morrêramos despenhados no sol.
Impossível sobreviver ou reatar laços, prédicas,
a nossa amiga violência de subúrbio. Vi-te apagar
do mapa um personagem amarelo de vida. Gostava, como te disse,
de mandar no mar e ter uma guarda de tritões. Toda a rua
seria nossa e as mãos haviam de parecer seguras.